Eis alguns pensamentos que, intuitivamente sabemos, mas que, alguns poetas ou filósofos conseguem expor com tamanha maestria que sempre vale a pena (re)ler.
Ao nos encontrarmos vivendo, encontramo-nos não somente entre coisas, mas entre os homens; não somente na Terra, mas na sociedade. E esses homens, essa sociedade em que caímos ao viver já tem uma interpretação da vida, um repertório de ideias sobre o universo, de convicções vigentes. De tal modo que o que podemos chamar de “o pensamento da nossa época” passa a fazer parte da nossa circunstância, nos envolve, nos penetra e nos carrega.
Essas ideias tem vigência ainda que nós, recém-chegados, não as aceitemos – essa vigência faz sentir sobre nós mesmo que seja negativamente. Normalmente, o homem até os vinte e cinco anos não faz mais que aprender, receber notícias sobre as coisas que seu entorno social lhe proporciona – professores, livros, conversas. Durante esses anos, pois, ele se inteira do que é o mundo, depara-se com as facetas desse mundo que já se encontra pronto. Mas esse mundo não é senão o sistema de convicções vigentes naquela época. Esse sistema de convicções foi se formando desde um longuíssimo passado, alguns de seus componentes mais elementares procedem da humanidade mais primitiva.
Mas justamente as porções desse mundo, seus assuntos mais agudos, receberam uma nova interpretação dos homens que representam a maturidade da época – e que regem todas as ordens dessa época – nas cátedras, nos jornais, no governo, na vida artística e literária. Como o homem sempre faz o mundo, esses homens maduros produziram esta ou aquela modificação no horizonte que encontram. O jovem se depara com esse mundo aos vinte e cinco anos e se lança a viver nele, por sua própria conta, isto é, também a fazer o mundo. Mas como ele medita sobre o mundo vigente, que é o dos homens maduros de seu tempo, seu tema, seus problemas, suas dúvidas são distintos das que sentiram esses homens maduros, que em sua juventude meditaram sobre o mundo dos homens maduros de seu tempo, já muito anciãos, e assim sucessivamente para trás.
Se se tratasse de um ou de poucos jovens novos que reagissem ao mundo dos homens maduros, as modificações a que suas meditações o levariam seriam poucas, talvez importantes em algum ponto, mas, ao final de contas, parciais. Não se poderia dizer que sua atuação mudou o mundo. Mas o caso e que não se trata de uns poucos jovens, mas de todos os que são jovens em certa época, os quais são mais ou muito mais numericamente que os homens maduros. Cada jovem atuará sobre um ponto no horizonte, mas, juntos, atuam sobre a totalidade do horizonte do mundo – isto é, uns sobre as artes, outros sobre a religião ou sobre cada uma das ciências, sobre a indústria, sobre a política. A modificação em cada ponto será mínima e, não obstante, temos de reconhecer que mudaram a feição total do mundo, de sorte que, alguns anos depois, quando outra leva de jovens inicia a sua vida, esta se depara com um mundo que não feição de sua totalidade é distinto do que aqueles que haviam encontrado.
O fato mais elementar da vida humana é que alguns homens morrem e outros nascem – que as vidas se sucedem. Toda vida humana, por sua própria essência, está encaixada entre outras vidas anteriores e outras posteriores – vem de uma vida e vai para outra subsequente. Um mecanismo automático acarreta, irremissivelmente, que numa certa unidade de tempo a figura do drama vital mude, como nesses teatros de obras leves em que cada hora se dá um drama ou comédia diferente.
“Hoje” é para alguns vinte anos; para outros, quarenta; para outros ainda, sessenta; e isso, de, sendo três modo de vida tão distintos, terem de ser o mesmo “hoje”, evidencia sobejamente o dinâmico dramatismo, o conflito e a colisão que constitui o fundo da matéria histórica, de toda convivência atual. E à luz dessa observação pode-se ver o equívoco oculto na aparente clareza de uma data. Mil novecentos e trinta e três parece um tempo único, mas em 1933 vive um garoto, um homem maduro e um ancião, e esse número, ao mesmo tempo em que se multiplica em três significados diferentes, abarca os três: é a unidade num tempo histórico de três idades distintas. Todos somos contemporâneos, vivemos no mesmo tempo e atmosfera – no mesmo mundo -, mas contribuímos para sua formação de modos diferentes. Somos contemporâneos, mas não coetâneos. Alojados num mesmo tempo externo e cronológico, convivem três tempos vitais distintos. E graças a esse desiquilíbrio interior a história se move, muda, gira e flui. Se todos os contemporâneos fossem coetâneos, a história ficaria sempre empedernida, petrificada, num gesto definitivo, sem qualquer possibilidade de inovação radical.
Assim, o presente do destino humano, presente no qual estamos vivendo – melhor dizendo, presente que nós somos, entenda-se, nossas vidas individuais -, é o que é porque sobre ele gravitam todos os outros presentes, todas as outras gerações. Se esses presentes passados, se a estrutura vital nessas gerações tivesse sido outra, nossa situação também seria distinta. Nesse sentido cada geração humana carrega em si as anteriores. Nesse sentido, é preciso reconhecer que o passado é presente, que nós somos seu resumo, que nosso presente é feito da matéria desse passado, passado este que, portanto, é atual – é a entranha, a intimidade da atualidade. Portanto, é indiferente, em princípio, que uma geração nova aplauda ou vaie a anterior – faça o que fizer, ela a carrega dentro de si.
Se a imagem não fosse tão barroca, poderíamos representar as gerações não horizontalmente, mas sim na vertical, umas sobre as outras, como os acrobatas de circo quando fazem uma torre humana. Uns sobre os ombros dos outros, o que está o alto tem a impressão de dominar as demais, mas deveria notar, ao mesmo tempo, que é seu prisioneiro. Isso faria nós nos darmos conta de que o passado não “foi” simplesmente, de que não estamos soltos no ar, mas sobre os seus ombros, de que estamos no passado, num passado determinadíssimo que foi a trajetória humana até hoje, a qual poderia ter sido muito diferente do que foi, mas que, uma vez foi, é irremediável, é assim – é nosso presente, no qual, querendo ou não, bracejamos náufragos.
Esses pensamentos foram extraídos do livro “Ao Redor de Galileu: Esquemas das Crises Históricas” do filósofo e escritor José Ortega Y Gasset.
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