Pulvis es et pulverem reverteris.
Tu és pó e ao pó hás de retornar. (Gn 3, 19)
Chegará o dia em que será necessário morrer e apodrecer em uma cova, onde tu estarás coberto de vermes (Salm 14). Todos estamos fadados a esse destino, quer ricos, quer pobres, quer nobres ou plebeus. Logo após o último suspiro, nossa existência passará à eternidade, estática, imutável, permanente; e o corpo físico reduzir-se-á a pó – Diz Santo Afonso Maria Ligório.
E continua suas reflexões: “Imagina-te em presença de uma pessoa que acaba de expirar: vê aquele cadáver, deitado ainda em seu leito de morte; a cabeça sobre o peito inclinada; desarrumado o cabelo, ainda molhado pelo suor da morte; fundos os olhos; desfiguradas as bochechas; rosto pálido. Empalidece quem o vê! Quantos apenas por haver contemplado um parente ou um amigo morto, mudaram de ida e abandonaram o mundo!”
Vê o que veio a parar aquele homem soberbo, aquele desonesto! Pouco tempo antes de sua morte, via-se acolhido e agasalho pela sociedade; agora é o horror e o espanto de quem lhe volta os olhos. Proclamavam, há não muito, o talento, a fama, a finura, a cortesia e a graça desse homem; mas, pouco depois de sua morte, nem mesmo sua recordação é mantida em suas memórias (Salm 9, 4).
No princípio, os parentes afligem-se por alguns dias, mas em breve consolam-se pela herança que quiçá obtiveram e, rapidamente, parece que sua morte lhes alegra.
Em suma, a morte despoja o homem de todos os bens deste mundo. Que espetáculo observar ser lançado fora de seu próprio palácio um príncipe, que jamais voltará a entrar nele, e considerar que outros tomam posse dos moveis, tesouros e demais bens do defunto! Finis venit; venit finis: o fim chega; chega o fim (Ez 7, 6).
Contemplas os sepulcros – diz São Basílico – e não poderás distinguir quem foi o servo e quem foi o senhor. Em presença de Alexandre Magno, estava Diógenes um dia buscando, diligentemente, alguma coisa entre vários ossos humanos.
- Que buscas? – perguntou Alexandre com curiosidade.
- Estou buscando – respondeu Diógenes – o crânio do rei Felipe, teu pai, e não o consigo distinguir dos demais. Mostra-mo tu, se sabeis encontrá-lo.
Aequat omnes cinis; Impares náscimur, pares mórimur: Todas as cinzas são iguais; nascem estranhos no mundo os homens, contudo a morte os iguala - diz Sêneca.
Quando Alexandre Magno morreu, exclamou um filósofo:
- O que ontem pisava a terra é hoje pela terra sufocado. Ontem não lhe bastava a terra inteira; hoje tem bastante com sete palmos. Pelo mundo guiava ontem exércitos inumeráveis; hoje, uns poucos coveiros, levam-no ao sepulcro.
Um homem maduro é aquele em cuja alma todos os sentimentos e emoções — ternura, ódio, esperança, pressa, indiferença, todos eles — são balizados pela consciência da morte. Devemos sempre nos preocupar com a morte — não com evitá-la, já que isso é impossível, mas com o modo como nos apresentaremos diante dela.
A morte, afinal, encerra as possibilidades da vida. A partir dela, nada pode ser alterado. — diz o filósofo Olavo de Carvalho.
Não temamos a morte, temamos o pensamento da morte. Pois a morte está sempre à mesma distância de nós; pois qual estação da vida está isenta da morte? Portanto, sempre pense na morte para que nunca precise temê-la.
Estamos equivocados quando pensamos que a morte é coisa do futuro; a maior parte da morte já passou. Quaisquer anos atrás de nós já não estão nas mãos da morte. Portanto, faça o que precisa ser feito hoje e já não dependerá tanto do amanhã.
Por isso, o hoje é um dia de muita saudade, mas também de sincera alegria. Ter vivido o suficiente não depende nem de nossos anos, nem de nossos dias, mas de nossas mentes.
Dom Henrique Soares explica a morte sob a doutrina católica. A morte no ser humano não é como nos animais. A morte é um mistério de separação. A morte sem o pecado seria uma separação sem passar pela experiência amarga e travosa.
A cara feia da morte, o gosto acre da morte é causado pelo distanciamento de Deus. Desde que o homem pecou pela primeira vez, o homem vive fugindo de Deus; confia desconfiando. Tornando Deus, ao mesmo tempo próximo e distante, como se fosse uma ameaça, de modo que o salto para a morte é sempre um ponto de interrogação. Se não for verdade? Se não tiver nada? Isso ocorre porque o homem com o pecado fechou-se para Deus.
A morte é separação. Separação da alma do corpo. Separação da minha vida, do que amei, do que construí, conquistei, das pessoas que amo, dos meus planos.
A morte é autoritária, não pergunta se eu tenho um compromisso importante no dia seguinte, se tinha alguém me esperando, não respeita nada nem ninguém. Os animais não morrem como o homem; eles não sabem que vivem e não sabem que morrem.
Dotado da consciência, só o homem sabe quem é e conhece as dores e belezas da sua existência e, sabe que vai morrer, portanto, vem necessidade de dar um sentido à sua morte. Morrer como um herói, morrer angustiado, praguejando ou de peito aberto, cabeça erguida e ombros para trás, sendo o melhor momento da própria vida, como Jesus Cristo fez.
Jesus Cristo serviu de exemplo como um chamado a cada um de nós darmos sentido à nossa morte. E o paradoxo é que o sentido da minha morte vai sendo plantado ao longo da vida. Diz o ditado popular: Como se vive, se morre!
Assim, temos que viver da morte que vamos morrer. A vida segue carcomida pela morte tal qual madeira podre carcomida pelos insetos. A morte é lenta e gradativa. A morte é a derrota, a saudade, a perda de alguém, o fracasso. Posso ver tudo isso como uma derrota maldita ou ir reunindo os caquinhos da minha morte com esperança e fé até que no último suspiro ela termine o trabalho dela e a minha morte se transforme em glória.
Mas - diz Sêneca - assim como em um navio que faz água, você sempre pode reparar a primeira fissura, mas quando muitos buracos começam a abrir e deixar entrar água, o casco decrépito não pode ser salvo; da mesma forma, no corpo de um velho, há um certo limite até o qual você pode sustentar e escorar sua fraqueza. Mas quando começa a se assemelhar a um edifício em ruínas, quando cada articulação começa a espanar enquanto uma está sendo reparada outra cai, então é hora desse homem olhar em sua volta e considerar que pode cair. Mas bons pensamentos podem tornar alegre a própria visão da morte. Um grande piloto pode navegar mesmo quando sua vela é rasgada.
Em algum momento é preciso assistir ao próprio funeral e ter o próprio corpo enterrado, vivendo como se tivesse sobrevivido à própria morte. É preciso falar livremente sobre a morte, pensando em persuadir-nos de que, se este processo contém qualquer elemento de desconforto ou de medo, é culpa do moribundo e não da própria morte. Aquele que tiver sorte de ser colocado suavemente à deriva da velhice, isto é, não subitamente arrancado da vida, mas retirado pouco a pouco, em verdade, deve agradecer aos deuses.
Nosso Senhor Jesus Cristo, a fim de estarmos sempre bem preparados, diz-nos que a morte virá como um ladrão oculto e de noite. Exorta-os outras vezes a que estejamos vigilantes, porque, quanto menos pensarmos, virá Ele mesmo para julgar-nos (Lc 12, 40).
Santo Agostinho diz “o senhor nos oculta a última hora a fim de estarmos, todos os dias, dispostos a morrer. Diz ainda que certo rei da Sicília, para manifestar a um convidado o grande temor com que se sentava no trono, fê-lo sentar-se à mesa, sob uma espada que pendia de um fio sutilíssimo sobre sua cabeça, de sorte que o convidado, vendo-se de tal modo, pouco conseguiu alimentar-se. Pois todos estamos em igual perigo, viso que pode cair em nós a espada da morte, a qualquer instante, resolvendo o negócio da eterna salvação.
A morte parece horrível aos pecadores; mas aos justos mostra-se preciosa e desejável. São Bernardo diz preciosa como “fim dos trabalhos, coroa da vitória, porta da vida.”
Os mundanos desejosos da vida, que outra coisa não buscam senão prolongar o tormento? – diz Sêneca.
Mas a redenção chega nas palavras de Aristóteles, “o que quer que tenha entrado no universo da existência, mesmo que por um só instante, não pode nunca mais retornar ao nada, que é alheio a toda existência. Só pode transpor-se a uma outra escala de tempo, imóvel, fixo na eternidade, mais autêntico e real do que nunca.” Seria isso o que chamamos de legado? Acredito que sim. Parece que aqui, escondido há mais de dois mil anos, está a chave-mestra que abre a porta dos segredos sobre legado.
É equivocado pensar que o legado é sobre aquilo que é material. Não se trata de materialidade, e sim temporariedade. O legado se refere àquilo que é atemporal. Nada pode prejudicar o que é eterno. Eterno é aquilo que escapa à ação do tempo.
E você? Já fez a pergunta se tem caminhado em direção a uma boa morte? Você é um indivíduo realizado? Será se sua vida era o que tinha sonhado para si desde a juventude.
A morte não é um mal; porque você precisa perguntar? A morte é um privilégio igualitário da humanidade. Neste sentido, a existência precede à essência e a essência precede ao legado, na medida em que, somente após existir é que se extrai o que realmente é e o que realmente é constitui o que chamamos de legado.; ou ainda, após a morte, a essência eternizada tornando-se imutável:
O eternizado e imutável é o chamado legado! Legado é que escapa à ação do tempo!
Na Bíblia Sagrada consta a seguinte lição: Bem-aventurados os que, ao morrer, estão já mortos para os afetos terrenos (Ap 14,13) Não temem estes a morte, mas antes desejam-na e abraçam com alegria, porque, em vez de apartá-los dos bens que amam, une-os ao Sumo Bem, único digno de amor, que os fará eternamente felizes.
São Josémaria Escrivá diz - Já viste, numa tarde triste de outono, caírem as folhas mortas?
Assim caem todos os dias as almas na eternidade. Um dia, a folha caída serás tu.
Assim é a morte! Tão festejada; tão temida. Cantada em prosa e verso por poetas; de forma irônica por uns, com sobriedade ou tensão por outros. Desdenhada por muitos; ignorada por tantos outros. Tema presente em todos os períodos da história da humanidade; frequentemente refletida por imperadores e pensadores da idade antiga. Profundamente estudada por Santos Padres e Doutores da Igreja na idade média e filósofos da idade moderna. Presente a memória de reis, plebeus, ricos, nobres, pobres católicos e ateus.
Se é assim, afinal, então o que nos falta? Porque temos tanta dificuldade de falar da morte?
E você, já parou para pensar na sua?
Fontes:
Bíblia Sagrada. Tradução de Fernando. 3ª Edição. São Paulo - SP: Editora NVI, 2023.
Cartas de um Resiliente: Perceber o mundo e não ser controlado por ele. Sêneca. Trad. Alexandre Pires Vieira. São Paulo. Faro Editorial, 2022.
Preparação para a Morte: Santo Afonso Maria de Libório. Trad. Enzeo Emmanuel. 2022.
Caminho. eBook. Josemaria Escrivá de Balaguer. 1939. Carites in Veritate.
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